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Subiu morro acima, correndo o máximo que podia. O corpo extremamente magro, apesar de mal alimentado, se fazia ágil para fugir de seus agressores. Eram três, e quando ele caiu, o atingiram com uma saraivada de chutes e socos, onde quer que poderia alcançar. Primeiro o chamaram de rato filho da puta e ladrão, até o Zé Pedreiro entrou no bolo pra dar umas porradas. Tava irritado mesmo, o domingo tava um tédio, tinha brigado com a mulher e o genro folgado se apossou do sofá da sala, roubando a única televisão da casa. Quando ele sentou no portão de casa e o furdunço começou ,ele deu graças a Deus por ter arranjado um “evento” pro domingo à tarde.

Também tinha o Pedro da quitanda, que pegou um pedaço de pau pra  usar contra o homem imundo ali caído. Pedro tava até de bom humor, tinha conseguido um lucro a mais adulterando o peso da balança e cobrando o preço de um quilo pelo que só tinha 900 gramas. Ele também não sabia bem qual era o assunto, mas se o cara tava apanhando, alguma coisa tinha aprontado, deveria ser um drogado querendo dinheiro pra comprar pedra, então ele, Pedro da quitanda, ia ajudar com a justiça.

Também tinha a Dona quitéria , que ouviu boatos de que o cara era um assassino. Então correu pra dentro procurando alguns ovos pra jogar no “animal desumano”, ela jamais ousaria encostar no cara nem que fosse pra bater, ” e se ele tivesse HIV e me contaminasse?” pensava ela.

A dona Maricota, que tinha ouvido dizer que ele era estuprador se resumiu a dizer que  ” Se um homem desses encosta em filho meu, eu mato com as próprias mãos! Tem que bater mesmo, assassino tem que morrer!”

E era gente se juntando à baderna, era gente se deleitando com a cena, carro parando pra ver o vuco- vuco e o tal ” rato pedófilo”, ferido e talvez até com umas costelas quebradas, conseguiu fugir por entre a montanha de socos e chutes  e enquanto as pessoas se estapeavam no que mais parecia uma guerra de rua, o Judas que estava sendo malhado , conseguiu correr.

Cambaleante e ferido, subiu morro acima e até conseguiu respirar ao ver que ninguém percebeu que ele tinha escapado. Foi então que a Dona Quitéria, agora com tomates na mão, percebeu que o rato tinha fugido e gritou pra todos, “PEGUEM ELE!”, E então todos saíram do transe provocado pela adrenalina e cheiro de sangue e subiram o morro correndo atrás do tal assassino, drogado e ladrão.

O Judas continuava correndo, mas não imaginava que outras pessoas se juntariam  e mais agressores entrariam no bando,  além de rato filho da puta, ele agora também era chamado de estuprador, e então levou mais uma rasteira, caiu e viu ali sua morte, já não conseguia contar quantos agressores eram, e era ignorante a ponto de saber pouco da vida e não saber ler a feição das pessoas, mas o que ele via ali era puro ódio, só não conseguia entender o porquê disso tudo.

Entre chutes na cabeça, dentes perdidos e falta de ar pelo soco que levou no estômago, de fato se rastejou como um rato, mas conseguiu correr mais um pouco, até cair encurralado, com os olhos ardendo e a boca anestesiada de dor. Dos poucos dentes que ele carregava, já não restara nenhum, estava desfalecendo, pensou ter visto a morte chegar, os gritos de “ladrão”, “assassino” e “estuprador” estavam diminuindo de volume, não porque a multidão estava se calando, e sim porque o corpo dele já não funcionava bem.

Mas de fato houve um momento de silêncio, quando uma mulher gritou: “PAREM,E AO INVÉS DE FAZER JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS, CHAMEM A POLÍCIA, DEIXEM QUE ELA RESOLVE!”

Meu amigo, quando se fala em polícia,não fica um!

A multidão se dissipou, os justiceiros fugiram pra não assumirem a culpa por assassinato e fez-se o silencio,a chuva caiu e foi essa a desculpa pra que todos voltassem pras suas casas.

Medo da polícia? magina! Por que alguém haveria de ter medo da polícia? só existia cidadão de bem, todos empenhados em buscar a justiça . Mesmo assim, coincidência ou não, quando se falou em polícia foram todos para o conforto de seus lares,menos o rato que não tinha pra onde ir.

O Judas bem tentou arranjar alguma força no meio da dor pra se levantar e fugir antes que fosse preso, mas naquele ponto da história as pessoas tinham mais motivos pra fugir do que ele. Ele estava ali, caído, ferido, sangrando, provando a justiça do povo, nem por assassinato, nem estupro, nem tráfico, e àquelas alturas, ele era quase o único inocente. Era roubo, roubou cobre. Fios de cobre, pra vender pra comer, ou pra se entorpecer…Se não era, agora poderia ser, haja drogas para costelas quebradas e dentes arrancados!

 

E então o rato estava ali sozinho sentado na beira da calçada, com feridas abertas por todo o rosto. Descia uma água de esgoto pela sarjeta, o rosto dele ardia, ele fez as mãos em concha e banhou o rosto com a água imunda. Antes lavado em sangue, agora lavado em merda.

Levantou-se, agradeceu a Deus por ter sobrevivido e seguiu se arrastando sabe-se lá pra onde.Na cabeça dele ele sabia, não era craque, nem maconha, nem cocaína, era fome.

A noite chegou pra todos, cada agressor seguiu pro conforto do seu lar, era hora do Fantástico, na televisão uma matéria sobre animais maltratados. O Pedro da Quitanda saiu da sala reclamando: “Como podem passar uma barbaridade dessas, uma violência dessas em pleno domingo à noite quando estamos com nossos filhos assistindo tv?”

…A Dona quitéria chorou de dó dos bichinhos, o Zé pedreiro pediu ao genro que “procurasse nas enterneti os endereço da associação protetora dos animais”, ia fazer uma doação pra ajudar os pobres cachorrinhos espancados.

E todos dormiram em paz naquela noite, menos o rato,este não conseguiu dormir.

2 respostas para “Animais.”.

  1. Parabéns, muito bacana o texto (e bem verdadeiro)!!!

    1. Muito obrigada pelo elogio 😀

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